De como uma dupla direitista que só queria salvar o Brasil da corrupção acabou expondo conterrâneos a risco de morte

 

Eram os tempos da campanha eleitoral, aquela na qual o candidato fascista tomava a dianteira nas pesquisas e acabou vencendo numa eleição marcada por propagação sem igual de notícias falsas, discurso de ódio, arminhas com a mão e fuga de debates.

Saca-Rolha e Ferradura, guardinhas de esquina da pequenina e longínqua Piraju, eram cabos eleitorais voluntários do sujeito, encarregados de distribuir adesivos de fuzis, organizar carreatas e espalhar notícias mentirosas sobre mamadeiras eróticas e ameaça comunista nos grupos de WhatsApp e Facebook da cidade.

Ferradura e Saca-Rolha estavam muito ocupados com a organização de uma carreata pró-nazismo (coisa que eles nem sabiam o que significava) e ficaram “pistolas” quando receberam a informação de que a esquerda local estava se mobilizando para uma intervenção política na ponte durante a passagem dos carros. Não bastasse a tal intervenção, os vermelhos estavam debochando da inteligência dos organizadores e dos participantes da carreata, chamando-lhes de “analfabetos políticos”.

“Essa gente não tem patriotismo nenhum, Ferradura!” – vociferou Saca-Rolha, dando um tapa na mesa. A suástica da parede do escritório chegou a tremelicar com o ventinho do movimento do soco.

“Acalme-se, Saca… nós somos a maioria e eles terão de se curvar perante nosso capitão a partir de 1º de janeiro. A vitória é certa…”

“Sim, é certa, mas essa liberdade de expressão da esquerda tem que acabar logo. É melhor essa cambada já ir se acostumando a ficar calada, pois é assim que ficarão quando o Mito jogá-los todos no porão do DOPS.” – Saca-Rolha cuspiu no chão para livrar-se de um pigarro que coçava sua garganta.

“Não temos motivo para preocupação” – ponderou Ferradura – “afinal, são quantos? Meia dúzia?”

“Os esquerdopatas? Sim, meia dúzia. Talvez até menos.”

“Aquela branquelinha encrenqueira?” – questionou o Fefê.

“A branquelinha, o viado que se veste de mulher, o maconheiro da ONG dos ecochatos, a jornalistinha metida a besta, a mulher do calhambeque caindo aos pedaços e mais alguns loucos que eu não sei o nome. Malditos! Comunistas! Vagabundos!”

“Todos eles trabalham, meu caro”

“Não importa. Se têm tempo para atrapalhar a nossa carreata são vagabundos. Se são esquerdistas, são vagabundos. Acredita que outro dia encontrei a mulher do calhambeque lendo um livro na padaria às quatro da tarde? Quem é que tem tempo para ler livros? Só mesmo uma vagabunda feito aquela!”

“Deve ser por isso que não troca aquela lata velha. Gasta tudo com livros. Tá loco. Já viu o preço daquilo?”

“Nunca fui de ler livros, Ferradura. Tenho só uma Bíblia na cabeceira, que nunca abro. Depois que inventaram o zap-zap, sabe como é…” – e Saca-Rolha desembestou numa gargalhada tão impactante que sua dentadura até caiu, interrompendo seu riso subitamente.

Ferradura fez que não viu ou não achou graça. Manteve seu olhar fixo na suástica da parede e de repente teve um estalo:

“Já sei, Saca! Entre em contato com a imprensa. Peça àquele menino que filma os atos que nos mande todas as imagens da manifestação dos vermelhos no nosso zap. Vamos mandar as fotos desses comunistas pro filho do Mito. Ele saberá o que fazer.”

“Tem certeza, Ferradura? Não acha essa medida meio extrema? Sei lá, esse menino anda com uma turma estranha…”

“Que turma estranha o que! Eles não são esquerdistas valentes? Eles que lidem com a turma do Flav… digo, do menino.”

“Você é quem manda” – respondeu Saca, já pegando o telefone para ligar para a imprensa reivindicando uma cópia do vídeo da manifestação esquerdista próxima. “Não seria melhor somente uma ameaçazinha básica? Podemos postar no Facebook que o Marcos Pontes vai leva-los para o espaço. Podemos fazer arminha com a mão e apontar para a cara deles. Quer mesmo enviar os vídeos para o filho do Mito?”

“Pare de ser frouxo, Saca-Rolha! Quem estará na mira são eles, não você. Nossa cidade estará muito melhor sem esses petistas ecochatos. Deixe que vão pra Cuba, pra Venezuela!…”

“Ou pra baixo da terra…”

“Não diga isso em voz alta, imbecil! As paredes têm ouvidos!”

A vitória do fascista se consolidou. Saca-Rolha e Ferradura ficaram tão felizes que dançaram nus em volta de uma fogueira (da inquisição) para comemorar e há quem diga que até sacrificaram um jumento de carga e uma anta selvagem em homenagem ao Mito.

A confirmação não veio, mas tudo indica que as imagens dos esquerdistas do protesto da ponte foram enviadas para a milícia, que preparava expandir suas atividades para todo o país, inclusive para o interior de São Paulo.

Caso algum esquerdista vagabundo seja vitimado por qualquer meio suspeito nos próximos dias, meses ou anos, lembrem-se sempre das ações da dupla bolso-fanática Saca-Rolha e Ferradura.

 

 

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