Texto pinta um cenário de ruas esburacadas e auge da piracema na ponte

Uma narrativa de fatos cotidianos, com linguagem informal, marcada pelo tempo com pinceladas de lirismo, humor, azedume, ironia ou aquilo que o autor estiver disposto a colocar no papel. Esses são os ingredientes de uma boa crônica.

Gênero genuinamente brasileiro, a crônica é uma narração curta feita especialmente para jornais e revistas. Ao longo da história da imprensa nacional, muitos nomes de peso da literatura e do jornalismo dedicaram-se a essa modalidade de texto, dentre eles: Machado de Assis (1839-1922), Lima Barreto (1881-1922), Rubem Braga (1913-1990), Fernando Sabino (1923-2004), Paulo Mendes Campos (1922-1991), Carlos Drummond de Andrade (1902-1987), Otto Lara Resende (1922-1992), Nelson Rodrigues (1912-1980), Clarice Lispector (1920-1977) e João do Rio (1881-1921). Hoje em dia, a crônica ainda ocupa boas páginas dos jornais nacionais e regionais, com nomes carismáticos como Luis Fernando Verissimo (1936) e Antônio Prata (1977).

Nos anos 50, os colunistas do jornal “O Comércio de Piraju” volta e meia se aventuravam em escrever alguma croniqueta, obtendo resultados muito bons, como é o caso de “Comentários de rua”, de Valdir Bittencourt Carvalho.

Na teoria, crônicas são consideradas textos “com prazo de validade”, pois mencionam fatos sobre determinado dia e, logo após a publicação, já são consideradas “velhas”. Entretanto, mesmo “vencidas”, essas peças literárias/jornalísticas configuram um grande presente para os leitores de qualquer época. Graças à crônica de Valdir, podemos, hoje, imaginar recortes das cenas da Piraju de 1953. Confira:

“Comentários de rua”

Valdir Bittencourt Carvalho

Aproveitando alguns minutos de folga, fui até a represa assistir ao fenômeno da piracema. Os peixes, tentando transpor a barragem, executam mil acrobacias, mas o esforço é inútil e muitos se esmigalham no leito de pedras pontiagudas do imponente rio. Na volta, encontro um amigo consertando um automóvel, há pouco tirado da agência.

– É o resultado das más estradas? – perguntei.

– Caí num buraco, mas não foi na estrada.

Como o amigo estivesse muito atarefado, não quis importuna-lo com indagações. Segui recalcando a curiosidade, cioso de saber em que lugar havia quebrado o carro. A estrada Piraju – Ourinhos está em péssimo estado de conservação. O Sr. secretário da Viação e Obras Públicas achou exageradas as reclamações dos que nela transitam. Mas não deixou de concordar que há trechos de difícil acesso. No período das águas, o tráfego é interrompido.

Na rua Major Mariano, encontro um aglomerado de pessoas. Um menino havia torcido o pé.

– Pisou em falso? – interroguei.

– Por onde ele passou, em qualquer lugar se pisa em falso.

Nesse momento chega o pai da criança e retive, mais uma vez, minha curiosidade. Prossegui minha jornada até o correio. Retirei os jornais, fui ao jardim, ouvi, pela milésima vez, um disco carnavalesco e resolvi retornar à represa. Era preferível a música das águas… Na rua Major Mariano estava ainda um grupo comentando o acidente do menino. Como havia resolvido satisfazer minha curiosidade, fui logo perguntando:

– Onde o menino torceu o pé?

– Na calçada. Não vê que tiraram as lajes e até hoje não cuidaram de tapar os buracos?

Saí de mansinho. A coisa cheirava a política. E política de esquina é a mais nociva.

Mais adiante, encontro o amigo às voltas com o Plymouth.

– Para satisfazer minha curiosidade, quer me dizer onde quebrou seu carro?

– Se não foi na estrada, onde poderia ser? – E chegando-se para perto de mim, com as mãos cheias de graxa, disse – Velhinho, as estradas não estão boas. Mas as nossas ruas causam vergonha. Caí num buraco tão fundo que até pensei que tivessem aberto um poço de petróleo. A que você atribui esse descaso pela cidade?

– Há muita coisa a fazer. Os problemas são múltiplos e não podem ter solução imediata. Tenho a impressão de que as dificuldades serão vencidas, gradativamente.

Nesse instante chegam outras pessoas. Um espanhol ataca o governo. Saio sorrateiramente. Nesses assuntos não me envolvo.

Fonte: jornal “O Comércio de Piraju”, edição de 15 de fevereiro de 1953

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *