“Com a passagem do Miguel, todos nós pirajuenses perdemos um pouco da nossa memória, da nossa alegria e da nossa história” (Théo Motta)
[Miguel, o jornaleiro – munido de sua caixa de isopor repleta de lanches e de sua sacola de jornais velha de guerra – entra na sala, onde enfrento uma desafiadora página em branco no computador]
“Fala, Miguelzinho. Tudo bem?”
“Vendi tudo o jornal. Que é que cê tá escrevendo aí?”
“Nada. Tô sem ideia. Acho que vou escrever de você. Me conta alguma coisa”
À essa altura, o jornaleiro já estava acomodado em sua cadeira na lateral da sala, com a caixa de isopor e a sacola colocadas no chão. Não me lembro do texto que resultou daquela conversa, mas Miguel adorou. Na semana seguinte, veio contar que vendera todos os exemplares (como ele sempre fazia) e elencou uma lista de pessoas que tinham gostado do artigo. Matéria do Miguel era batata: sempre alguém elogiava.
“Cê vai fazer matéria minha no meu aniversário?”
“Vou, mas não conto. É surpresa”
O aniversário dele era dia 24 de novembro (sagitário, o signo das pessoas felizes).

Ele adorava conversar, fazer aniversário e sair no jornal. Nunca recusava uma foto, independente do cansaço e cara suada de quem atravessou a cidade de cabo a rabo a pé.
Um dia, o advogado José Silvestre (saudoso), em visita ao jornal, comentou que tinha gostado da matéria do Miguel e que era muito importante para uma cidade valorizar suas “personalidades lendárias”. Sim, Miguel já era uma lenda, amigo de todo mundo.
Suas caminhadas vinham acompanhadas de bate-papos, novidades, vendas do que quer que ele estivesse vendendo no momento e permuta de doces. O consumo de açúcar não fazia bem à saúde do jornaleiro, mas quem resiste a um bom chocolate? Nem mesmo às balinhas resistia. Vivia com os bolsos e sacolas cheios de guloseimas.
Uma vez contei a Miguel que estava vendendo rifas para pagar uma despesa judicial da ONG, coisas do rio. Poucos dias depois, o jornaleiro ficou surpreso ao ver que o carnê continuava intacto. “Não vendeu esse negócio ainda? Dá aqui que eu vendo pra você!” – e ele vendeu mesmo. Tudinho. Em pouquíssimos dias.

Enquanto trabalhei no jornal, era lei: toda segunda-feira, pela manhã, Miguelzinho aparecia para dar um alô. Nunca ficava mais de dez ou quinze minutos, podia estar sol ou chuva. Às vezes aparecia em outros dias da semana, chamava na janela, dizia oi, perguntava como estavam as coisas e dava tchau rapidamente: a rua o atraía. Precisava andar, bater perna, ver os amigos, trocar ideia, saber das novas, recontar as velhas, vender jornal, cartelas de rifa, kibe e espetinho, distribuir balinhas para uns, ganhar balinhas de outros, arrecadar uns chocolates.
Miguel foi o único “jornaleiro raiz” que conheci na vida, desses que percorrem a cidade e vendem na rua. Creio que jamais será substituído (e assim comprar jornal vai ficando cada vez mais fora de moda). Sua lembrança, entretanto, vai ficar pra sempre no imaginário da cidade. Um personagem folclórico, sim senhora!
Daqui a muitos anos, pirajuenses ainda saberão que houve um tempo em que jornais impressos circulavam e que tinha pessoas que saiam às ruas vendendo os exemplares todo santo dia: os jornaleiros! E um desses jornaleiros se chamava Miguel, um cara prestativo, amigo, grande apreciador de tranqueiras açucaradas e que percorria a cidade com uma pesada sacola de jornais encardida e uma caixa de isopor repleta de “coisas gostosas” (como ele mesmo definia os produtos que vendia).
Miguel foi uma lenda porque as lendas ficam. E em nossa cidade ele sempre vai ficar.


Naomi,parabéns pela sua homenagem,á uma pessoa boníssima.Miguel era membro de uma das mais tradicionais familias de nossa cidade,
cujos membros atuaram nas mais diversas atividades comerciais sempre com muito destaque.Dele,tenho boas lembranças dos meus
tempos no Jornal da Cidade,quando resolvi que o jornal precisava chegar ao maior numero de pessoas possivel,porque os anunciantes
precisavam ter retorno dos seus aportes publicitários.Então eu lhe entregava todas as segundas feiras,cerca de 100 exemplares do JC para
que fossem distribuidos graciosamente,e assim ele nos prestou um grande serviço,durante quase dois anos driblando os concorrentes para
conseguir cumprir o trato.Eu gostava de confundí-lo misturando a realidade com ficção,mas ele muito esperto sempre saía pela tangente
rsrsrsr.Acho que Miguel merece sim ser lembrado sempre como um exemplo de que a vida,mesmo que não seja aquela com a qual
sonhamos,vale a pena ser vivida com coragem e disposição.Vá em paz,Miguel