Théo Motta

O doente mental é como um beija-flor. Nunca pousa, está sempre voando, sempre longe do chão. O autor dessa frase é Artur Bispo do Rosário, que passou quase 50 anos de sua vida internado no manicômio Juliano Moreira no Rio de Janeiro porque disse ter conversado com Deus e esse Deus havia lhe ordenado que confeccionasse um manto para servir de coberta ao seu filho quando Ele voltasse ao planeta.

Depois de anos de internação, com tratamento desumano por eletrochoque, Bispo foi resgatado do inferno pelas mãos da Dra. Nise da Silveira, que instituiu nos manicômios a terapia laboral e assim encerrou um ciclo de entendimento no qual o doente mental representava um sério perigo para a sociedade e deveria ser neutralizado. Dra. Nise permitiu a Bispo desenvolver suas habilidades e ele pode produzir uma vasta obra, a maior parte dela usando restos de materiais recolhidos do rico lixo produzido pela classe média carioca.

Seu Manto da Consagração fez dele o único artista brasileiro premiado pela Bienal de Veneza e recebeu outros prêmios em outras mostras pelo mundo. A questão que fica é: Deus teria mesmo conversado com esse velho marinheiro nordestino que dormia nas areias de Copacabana até ser recolhido por uma família ilustre a troco de que cuidasse das roseiras do seu jardim ou tudo não passou de um surto psicótico?

Numa conversa que tive com um amigo, frei franciscano, sobre esse fato, ele defendeu a ideia de que Bispo não poderia ter conversado com Deus porque o ser humano, pelas suas imperfeições, só poderia ter acesso ao Divino pelas mãos de seu filho Jesus ou pela própria Virgem Maria.

Eu ainda argumentei que se Deus teria falado com Balaão (Números 13-14) através de uma mula, porque não falaria com Bispo? Não nos convencemos, mas me lembrei do fato de que certa vez, questionando a criatura de Deus que se julga criada à Sua imagem e semelhança, eu caminhava por uma longa avenida quando encontrei caídos e inertes dois beija-flores. Como a gripe aviária estava assombrando a população, recolhi-os do chão, coloquei-os numa caixa de sapatos e me prontifiquei levá-los ao setor de zoonoses. Mal dei partida no carro, ouvi barulhos insistentes no interior da caixa. Estacionei e, quando abri a tampa, os dois beija-flores voaram e sumiram entre as árvores.

Como conhecia a historia de Artur Bispo do Rosário, resolvi não alardear o fato para não ser internado como louco, já que não tenho as mesmas habilidades artísticas do mestre.

Mas contei um dia essa história a uma prima que tenho, a mais espiritualizada da família inteira, de inabalável fé. Ouviu atentamente, não respondeu nada, levantou-se apenas e ordenou como uma Nise da Silveira determinada: vamos até a cozinha tomar café. E nunca mais falamos sobre isso, até hoje.

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